quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O mais doce bárbaro

Meus heróis morreram de overdose. Ou de Aids. Quase todos. Os que sobreviveram falam de saudades. Dos tempos bons que não voltam mais. Ficaram repetitivos. Ou se calaram agarrados no conforto da consagração. Vira e mexe me pergunto o que fariam se estivessem vivos ou ativos. E concluo que é melhor não saber (dia desses, abandonei a reverência a um ex-escritor favorito ao me deparar, em seu livro mais recente, com um lamento interessante: a desfortuna de viver num tempo em que precisa dividir espaço num avião com qualquer mané vestido de calção e chinelo).
Não há nada mais comum do que ver alguém atingir o ápice e abandonar o trem da História na primeira curva acentuada. E de curvas acentuadas o Brasil esteve cheio desde que Caetano Veloso cantou para a família ao piano os clássicos “Feitiço da Vila”, de Vadico e Noel, e “Mãezinha Querida”, hit de Carlos Galhardo. Tinha só dez anos. Hoje tem 70. Desde então ficou difícil dissociar a história da música com a história daquele menino de Santo Amaro da Purificação – que, tão logo começou a cantar, transformou em veredas de um mesmo rio todas as influências surgidas antes e depois dele. O rio, por sorte, é caudaloso e perene, e não se esgotou nas tantas ondas surgidas a partir dali.
Puxando pela memória, consigo me lembrar dos meus primeiros encontros com alguns dos artistas que mudaram para sempre, para o bem ou para o mal, a minha forma de ver e sentir o mundo – quando algo tocou e não deixou de tocar jamais. Curioso: de Caetano não me lembro. Faço força e não me vem à memória o dia em que fomos apresentados. Não me lembro de ver alguém chegar e dizer: “cara, você precisa ouvir esse cara, precisa ouvir este CD”. Não precisava: era como se ele estivesse no ar o tempo todo, como no Rio está o Redentor; você pode passar a vida toda sem subir a seus pés, mas vai esbarrar sempre com ele por onde quer que se olhe ou respire.
Com Caetano é assim: uma onipresença inevitável. Ele estava na novela, no filme, na estante de casa, na sala de aula – aparecia sempre quando algum professor tentava me explicar os significados e significantes de uma história recente. Ou da nossa língua. Em casa, não estava só nos discos solo ou nos duetos com cantores que conheci antes dele; estava lado a lado, veja só, de Machado de Assis e Guimarães Rosa num exemplar enxuto da coleção “Literatura Comentada” que meu pai comprou para quando os filhos crescessem. Ou na capa da Enciclopédia Ilustrada da Folha de S.Paulo – o desenho de seu rosto era sério, enorme, e do alto dos caracóis de seus cabelos saíam a Monalisa, um CD, um foguete, um anel de Saturno, um Planeta Terra. Ainda muito jovem, eu olhava para aquela montagem e tentava imaginar o que mais seria capaz de sair daquela cabeça despenteada. Com os anos, aquela presença já entrava pelos olhos, boca, narinas e orelhas: ele estava sobretudo nas conversas, nas longas conversas em que desistíamos da compreensão e nos agarrávamos às dúvidas, às fatalidades. Porque quando o assunto não enveredava, alguém o buscava pelo braço para acudir: “é que nem aquela coisa que o Caetano dizia naquela música”. E vinham definições exatas como “com alguns homens ela até foi feliz, mas com outros, foi mulher”; ou para separações fadadas ao entra-e-sai dessas “novas pessoas que nós engendramos em nós, e de nós”; ou dos lamentos doídos de saber que a “gente é outra alegria, diferente das estrelas…” E de repente o maior elogio era dizer: “esses teus versos fazem lembrar a música de Caetano: como é bom saber tocar um instrumento”. Caetano era métrica e rima para tudo, e era lembrado até mesmo quando se ouvia com atenção os deles e os delas da TV Globo.
“Isso quem melhor definiu foi Caetano”, costumava ouvir nas aulas, entrevistas, palestras (eu tinha acabado de chegar a São Paulo e me inscrevi para um curso sobre os contos de Guimarães Rosa; no meio da aula o professor José Miguel Wisnik botou para tocar a “Terceira Margem do Rio” na tentativa de fazer o sertão chegar mais perto dos alunos da avenida Tiradentes. Porque Caetano, nascido na Bahia, era também uma completa tradução daquelas margens do São Francisco, como era de São Paulo quando cheguei por aqui e nada entendi).
Da mesma forma, cansei de viajar por cidades pobres, legadas ao abandono. Toda vez que me deparava com alguma delas pensava em voz alta: “aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína…”
Era como se alguém já tivesse pensado (e cantado) aquelas palavras por mim. Não havia muito a fazer ou dizer, se não repeti-las. Assim, conheci a Itapuã de Caetano bem antes de adentrar em “tuas lamas, algas, almas que amalgamas” ou na areia branca que ninguém arranca da lagoa do Abaeté. A realidade era apenas um espelho do que já havia vivido, cantado e absorvido a quilômetros dali.
Por isso parir este texto é tão difícil. Porque Caetano Veloso não é só o mais completo artista que eu vi, ouvi e vivi. É o artista mais completo que a geração de meus pais e avós viram, ouviram e viveram. E que possivelmente será visto, ouvido e vivido por meus filhos e netos. Como Chico Buarque ou os grandes romancistas, Caetano não é só autoridade em seu tempo: é autoridade da palavra, e ela não é datada; não envelhece. Com um detalhe: Caetano chega aos 70 anos de uma forma sui generis, como praticamente tudo o que vem dele: ele sobreviveu ao próprio tempo. Não precisou arrombar as portas da percepção para imaginar um mundo de diversas alegrias bonitas, possíveis, sem juízo final. Nem alimentou a verve autodestrutiva que marcou os gênios rebeldes e de finais trágicos. Em parte porque não se agarrou em rótulos, catálogos, falsas coerências. Não foi só amor ou rebeldia; não foi só caretice ou inconsequência; não foi só corpo ou expressão; guitarra ou violão; carnaval ou reflexão; política ou alienação. Foi um pouco de tudo, junto, e em contraste.
Com o tempo, não se transformou num senhor de longas e brancas barbas, amparado por uma bengala enquanto arrisca em voz pausada verdades de um tempo remoto: “olha, filho, no meu tempo as pessoas se interessavam por outros assuntos…” O homem velho vestiu os ombros nus de outros tempos, e agora faz seus shows com guitarra, jeans, camiseta, jaqueta e tênis. E seu tempo é o de agora: um tempo de tentar coisas novas, novos sons, novos temas. Da Bahia, da Inglaterra, da Espanha, de São Paulo, da Argentina, do morro carioca.
Quem o observa pensa ainda estar diante daquele moleque exaltado que, desclassificado num festival de música com a sua “É Proibido Proibir”, investiu contra as vaias com mais vaias: “Nós, Gilberto Gil e eu, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas elas. E vocês? Se vocês em política forem como são em estética estamos feitos”.
Vaias, vaias e vaias. Passou o tempo, todos envelheceram e o País que o vaiava segue acomodado, desigual, reacionário, imerso em preconceitos estéticos e políticos. A linha evolutiva da música popular brasileira correu em paralelo com as ditaduras, e nem a velhice nem a democracia o tornou mais comedido. Caetano seguiu entrando e saindo das estruturas e dos barracos das grandes discussões, das quais muitas vezes saiu surrado – e tantas vezes com razão. Mas onde estavamos pensadores a cada nova crise? Onde estavam os escritores quando precisaram se posicionar sobre temas como o aborto, o meio ambiente, o progresso, a violência urbana, a corrupção, as UPPs? Estavam em casa, com a cabeça enfiada na duna. Caetano seguiu arriscando, acertando em cheio algumas vezes e escorregando em outras tantas – só ele seria capaz de provocar uma crise na República devido à deselegância nada discreta (ou só “idiota”, em bom português) contra um presidente eleito. Uma crise contornada pela mãe, dona Canô, que às rodas do centenário teve de ligar para Luiz Inácio Lula da Silva e pedir que relevasse as palavras do filho…
É porque o que se diz em melodias é perdoado; o que se diz de forma crua, não. Quando não canta, Caetano choca e não produz só suspiros; ele se humaniza. E todo mundo para para ouvir. Como quando ele confessa ter chorado ao assistir, sozinho no cinema, à história de Jean Charles de Menezes. Ou quando lamenta ter “saudades do equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude”, como disse em entrevista recente. Caetano tem razão quando diz que “não se pode pôr tudo na conta da velhice”. Porque só ele vê sentido em coisas como: “Os EUA só se salvarão quando entenderem Chico Buarque e Lulu Santos”. É o mundo bonito, possível, sem juízo final que nem todos enxergam.
Por isso ele precisa cantar. Para destrinchar o que a escritora Inês Pedrosa chamou, em um ensaio recente, de “amor a fundo perdido”. Porque, como sentenciou a autora portuguesa, “ninguém foi tão longe, melodicamente, na decomposição cirúrgica do ego” que Caetano, que “implode em vez de se desdobrar; que não tem vários dentro de si – que é, ele mesmo, inteiramente vário”.
Sobre esse Caetano inteiramente vário é difícil dizer qualquer coisa que já não tenha sido dita. Porque qualquer sentença soa como prólogo, e as cortinas ainda não foram cerradas indicando o fim do show. Nesta terça-feira 7, dia em que completa 70 anos, não haverá homenagem, pronunciamento, comemoração. Caetano não quer transformar seu aniversário num evento. Não é preciso: ele deve seguir ocupado em arremessar discos novos contra quem acredita que ele deixou o melhor da sua música para os anos 70. É dessa forma que ele seguirá onipresente nas salas de aulas, estantes de livros, CDs, palestras, bancas de jornais e revistas. E a cada vez que for encontrado alguém vai de novo se perguntar: ah, que esse cara tem? De onde veio? Para onde vai?
Ninguém sabe, mas todo mundo viu. Ouviu. E viveu.

Matheus Pichonelli - Carta Capital
http://www.cartacapital.com.br/cultura/o-mais-doce-barbaro/

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